Matérias O Dono da Voz

Sílvio Navas, o homem das 1000 vozes.

Um dos nomes mais versáteis da dublagem brasileira e que deixou um rastro de atuações memoráveis.


“Espíritos o mal, transformem essa forma decadente em Mumm-Ra, o de vida eterna!”. Quem viveu a infância dos anos 80 certamente deve conhecer esse bordão do desenho ThunderCats e lembrar que ele era pronunciado por uma voz apavorante e grave. Mas quem na mesma época assistia aos Smurfs recordará que a voz do Papai Smurf era de um velhinho simpático e gracioso. O que elas têm em comum? Ambas eram feitas pelo talentosíssimo dublador Silvio Navas.

O Brasil está aos poucos perdendo a melhor geração da sua dublagem de toda a história. Arrisco-me a dizer, embasado na valorização da técnica hoje mais do que do talento, que essa não será jamais superada. Há pouco mais de três anos, perdíamos dessa constelação sua estrela mais versátil. Eu o chamava de “Rei dos Falsetes”.

Nos Estados Unidos, dubladores com esse perfil como Daws Butler ou Don Messick, não morrem sem que o grande público tome conhecimento. Aqui onde temos uma das mais conceituadas dublagens do mundo, Silvio Navas é papo apenas de nerd.

Ele era capaz de fazer um suave Chaplin e um rude Darth Vader, um calmo Willy Wonka e um agressivo Mumm-Ra. Diversos personagens em Barbapapa e diversos em Smurfs, cada qual com sua própria personalidade e voz. E o bonachão Bud Spencer o que tem a ver com o talentoso Marlon Brandon? Navas nos passava exatamente o que o ator almejava, tendo nos presenteado com atuações inesquecíveis. “Ele era talentoso e versátil até demais e um excelente diretor. Como não lembrar de quem marcou nossa história principalmente na dublagem?”, comenta a dubladora Adalmária Mesquita, com quem dividiu bancada em Smurfs.

Sílvio Navas, versatilidade que marcou gerações.
Sílvio Navas, versatilidade que marcou gerações.

O de Vida Eterna.


Silvio Benedito Guimarães Navas nasceu em 15 de março de 1942 em Santos (SP) e mudou-se aos 7 anos de idade para a capital paulista. Aos 12 anos entrou no mundo das artes cênicas através do grupo Teatro Novos Comediantes, onde foi preparado para ingressar na televisão.

No início dos anos 60 chegou à TV Excelsior, emissora onde desempenhou as funções de produtor e coordenador. Nos anos 70 também apareceu nos cinemas em filmes como 2000 Anos de Confusão (1969), Os Maridos Traem… e As Mulheres Subtraem (1970), Os Caras de Pau (1970) e Audácia (1970).

Entre as várias vertentes de sua carreira foi compositor, fazendo parte da Sicam (Sociedade Independente dos Compositores e Autores Musicais), compondo a música “Aleluia” com David Cardoso para o filme Os Maridos Traem e As Mulheres Subtraem.

Atuando no teatro Silvio participou do “Grupo dos 9” com a peça Os Desclassificados (1968) e atuou em espetáculos infantis como Gato de Botas (1970) e Três Peraltas na Praça (1969); também esteve nos comerciais de televisão da Eletroradiobraz e Winston.

Silvio foi casado com a atriz e dubladora Lígia Rinelli nos anos 70, mas a união durou pouco mais de um ano. No final dos anos 80 casou-se pela segunda vez com “Araci” vindo a criar o filho de sua esposa como sendo seu.

Dono de um temperamento forte, ele colecionou tanto amigos quanto desafetos, chegando a se desentender com Herbert Richers por desacordos profissionais o que o afastou de escalações no estúdio por algum tempo. Mesmo morando em Santos também ficou longe da DPN por não se entender com o proprietário do estúdio.

Durante a grande greve dos dubladores no Rio de Janeiro no final da década de 1970, a não adesão de Navas ao movimento fez com que o dublador causasse um certo desconforto no meio, pois era nome de quem se esperava uma luta intensa pelas exigências da categoria. No começo da greve Silvio Navas chegou a liderá-la, o que aumentou o impacto de sua não permanência no movimento.

Por ser convicto de suas opiniões acabou recebendo a fama de intransigente no meio profissional, mas quem conquistou a amizade de Silvio Navas recorda dele com extremo carinho, ou pelos laços afetivos ou pelas oportunidades que Silvio concedeu a inúmeros profissionais estando na direção. “Ele me deu um papel em uma série cujo título era Oito é Demais que conta a história de um homem sozinho que tinha 8 filhos e meu personagem era a Nancy. Ele me disse que me deu aquele personagem porque eu tinha um jeitinho e uma voz meiguinha como o personagem, e eu me apaixonei por ela.”, recorda a dubladora Edna Mayo.

Navas, uma vasta galeria de importantes personagens.

As 1000 Vozes.


Mas foi usando o poder da sua voz que Silvio ganhou notoriedade. Trabalhou em comerciais para o rádio como o da Proplastik em Santos, até que na TV Excelsior conheceu Older Cazarré em 1963 de quem partiu o convite para trabalhar em dublagem na AIC São Paulo.

Seu primeiro trabalho na área foi gravando 152 “aneis” ao lado de Hugo de Aquino, onde Navas fazia James McArthur no filme Raptado. A partir de então participou da dublagem de alguns desenhos como Os Flintstones e séries como Viagem Ao Fundo do Mar, A Feiticeira, O Besouro Verde, entre outros.

No início dos anos de 1970, foi trabalhar como diretor de dublagem na Cine-Castro em São Paulo assumindo o comando da série Guzula. Na época o estúdio ficava ao lado de uma tinturaria de propriedade de uma família japonesa. Para traduzir as histórias Navas procurou a ajuda do vizinho que ao ver partes dos episódios não conseguia entender a confusão que se desenrolava na tela. Por fim, Silvio optou por criar um enredo em cima do movimento dos personagens, artifício do qual ele era mestre. Sobre sua atuação como diretor Edna Mayo comenta: “ele sempre foi muito respeitado como diretor, muito bom, sabia o que estava fazendo”.

Atuou na dublagem paulista até 1977 mudando-se em seguida para o Rio de Janeiro onde começou a trabalhar na Herbert Richers. Esteve em vários estúdios durante os 21 anos em que dublou no Rio de Janeiro, retornando a São Paulo em 1998 aonde continuou a carreira até meados dos anos de 2000, quando então voltou para sua terra natal onde ministrava um curso de dublagem.

Entre os inúmeros trabalhos em que Silvio Navas emprestou sua voz alguns destaques em desenhos animados ficaram por conta do Esquilo Secreto (O Esquilo Sem Grilo), Fred Flints-tone (Ho-Ho-Límpicos), Gómez Adams (Família Addams), Vulcão Negro (Super Amigos), Dudu (Popeye), Rei Cutelo (Dragon Ball Z), Son Gohan (Dragon Ball), Bender (Futurama), Coruja (Bernardo e Bianca), além de fazer a voz do Papai Smurf, Vaidoso e Fazendeiro em Os Smurfs, todos os personagens em Barbapapas e a narração dos desenhos Dinamite, o Bionicão e Danger Mouse.

Em séries emprestou sua voz a Whizzer (Alf – O Eteimoso), Charles Ingalls (Os Pioneiros), Promotor Frank P. Scanlon (O Besouro Verde), Marujo Patterson (Viagem Ao Fundo do Mar), Dr. Elias Huer (Buck Rogers no Século XXV), Mark Gordon (O Homem Que Veio do Céu), Dr. Wilker (Galáctica – Batalha nas Estrelas), Peter Thornton (Profissão Perigo), Maxwell Q. Klinger (M*A *S*H), Stan Zbornak (Super Gatas) e Richard Ski’ Butowski (Trovão Azul).

Outro grande destaque da carreira de Silvio Navas foram os vilões. Sabia fazer uma voz firme e grave como poucos e usou seu talento numa vasta galeria de sujeitos malvados, como: Monstro Estrelar (Silverhawks), Grifo (Rambo e A Força da Liberdade), Katchum Crocodilo (A Nossa Turma), Darkseid (Super Amigos), Cardeal Richelieu (Dartagnan e Os Três Mosqueteiros), Desslock (Patrulha Estelar), Cy-Kill (Gobots), Multi-Faces (He-Man e Os Defensores do Universo) e Imperador Geldon (O Pirata do Espaço).

Vários atores consagrados receberam sua voz no Brasil entre os quais Ernest Borgnine, Walter Matthau, John Goodman, Kirk Douglas, Humphrey Bogart, Anthony Quinn, Bud Spencer e Charles Chaplin, esse último um orgulho pessoal do dublador por ter realizado seus poucos filmes falados.

Algumas das interpretações de Silvio Navas são memoráveis. Como não lembrar do dublador fazendo a voz do tenebroso Darth Vader em Guerra nas Estrelas, dublando de forma convincente Humphrey Bogart em Casablanca ou ainda de Gene Wilder no papel de Willy Wonka para o clássico infantil A Fantástica Fábrica de Chocolates, onde Navas usa uma voz suave, simpática e cheia de ironia?

No entanto, a dublagem que mereceria um Oscar para Silvio Navas, foi quando emprestou sua voz a Marlon Brandon no papel do mafioso Don Vito Corleone em O Poderoso Chefão. Com a performance de Brando premiada com o Oscar e as constantes críticas da imprensa à dublagem brasileira na época, dublar a película tornou-se um gigante desafio, que primeiro foi enfrentado por Gastão Malta na Álamo quando o longa-metragem foi dublado para estrear na Bandeirantes.

Depois veio a célebre redublagem da Herbert Richers para a Rede Globo nos anos 80, onde Silvio Navas aceitou o desafio de dar voz a Brando sem permitir que a qualidade artística se perdesse na adaptação, e não decepcionou, fazendo uma interpretação do cansado “padrinho” que torna um prazer ver o filme dublado. O dublador Marco Antônio Costa comenta: “ficou melhor do que o original. O Marlon Brandon era muito jovem em relação a idade da personagem e a voz dele não alcançava o “tipo”. O Silvio Navas fez um trabalho maravilhoso nesse filme.”

No filme “Indulto”, de Samuel Sanches.

Últimos Momentos.


A última produção em que Silvio Navas atuou na dublagem foi em 2007 na Dublavídeo, quando fez a minissérie colombiana, Zorro: A Espada e a Rosa, dando voz ao Sargento Garcia, interpretado por César Mora.

Em frente às câmeras seu último trabalho foi no filme O Indulto, uma produção independente e sem fins lucrativos, produzido pelo Canal Sun 21 HD e com direção de Samuel Sanches. “Aprendi com um mestre, foi uma aula de interpretação, ele não errava uma fala do texto”, afirma Sanches.

Em 2012 ao quebrar o fêmur ficou muito tempo internado em um hospital do SUS à espera de uma cirurgia. No final de 2014, foi diagnosticado com Mal de Alzheimer. Devido a cirurgia mal realizada Silvio precisou repeti-la não resistindo e vindo a falecer em 29 de julho de 2016.

Navas deixou o exemplo do que é ser um verdadeiro artista pois respeitava e entendia o assédio do seu público e ele, diferente de muitos outros da nova geração da dublagem, atendeu o seu até o último momento de vida. Por isso ele sempre será no coração dos fãs “o de vida eterna!”.

Izaías Correia
Professor, roteirista e web-designer, responsável pelo site InfanTv. Também é pesquisador da dublagem brasileira.

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